segunda-feira, 16 de julho de 2007

Eu e os pobres, os pobres e eu

Dando continuidade à minha suíte soteropolitana, e abrindo uma pausa na saga de Isaura, a vênus de ébano, de quem ainda tanto tenho a cantar e decantar, narro um caso ilustrativo de minha relação com o populacho – mais especificamente aquela faixa da população que só vê água de colônia quando dá descarga na privada da colônia penal. Isso mesmo. Falo dos desassistidos, digo, daqueles que ninguém assiste porque daria um filme dos mais chatos. Falo dos pobres.

Não é o caso de se dizer que não gosto de pobre. O imperativo categórico é outro: pobre não gosta de mim. Foi o que pude depreender certo dia, num semáforo da Avenida Centenário, próximo ao Farol da Barra, quando um cidadão abordou-me batendo no vidro de meu Blazer Turbo Intercooler, fazendo sinais: com uma mão esfregava a barriga e com a outra acenava em direção à boca. Imaginei a priori tratar-se de uma mímica onde ele aludia a um problema de digestão de uma refeição excessiva que teria redundado em mau hálito, no que fiz bem em não abrir o vidro. Logo depois o gesto passou a incisivo, digo, ele começou a apontar veementemente com o indicador em direção à boca aberta – talvez em direção a um dente incisivo – e calculei que ele queria mostrar-me alguma cárie proveniente do consumo de açúcar além do razoável. Mediante aquele desprendimento e presunção de intimidade, tão característico do povo baiano, foi que eu resolvi baixar o vidro para indicar ao cidadão o nome de meu dentista – e aí, em contato com o peculiar odor que exalava de cada poro daquela criatura, dei-me conta de que lidava com um sem-status reinvidicando fomento (eu poderia ter dito mendigo pedindo comida; não me chamem de politicamente incorreto, ora pois).

Ora, desde pequeno fui ensinado a não negar uma fruta a quem de nada desfruta. Pois naquele momento eu tinha acabado de abrir a embalagem de uma barra de cereal diet, sabor manga com cevada, e já dado uma mordiscada, quando reparei na indiscreta protuberância que era a barriga do cidadão, exposta ao ar livre por conta de um lamentável rasgão na camiseta. Ato contínuo estendi a barrinha a ele, explicando em bom português (respeitando a prosódia baiana, claro) que ele precisava perder peso, no que aquela barra de baixíssimas calorias vinha a calhar.

Eu estaria exagerando se dissesse que ele olhou aquela barrinha como quem contempla um petardo fecal recém-expelido? Não, não seria exagero. Exagero foi o xingamento que ouvi, relativo a eu devolver o metafórico petardo fecal ao orifício de onde ele teria saído. Exagero foi a meia-volta que o pedinte deu, virando-me as costas e saindo sem agradecer.

Minha índole cordata me fez sentir a mais pura comiseração pela criatura. Provavelmente manga com cevada não era seu sabor preferido, mas eu entendia aquela inesperada overreaction: somado à evidência da idiossincrasia de paladar, ressaltava-se o fato de que, lato sensu, pobre não gosta de mim. Talvez seja uma coisa dos santos não baterem.

E coincidência das coincidências: naquele momento eu adernava em direção à Baía de Todos os Santos. Vai entender.

Um comentário:

Anônimo disse...

Moderado e sutil, como pude constatar. ;o)